Erotismo e Questões de Gênero em Anora

Por Ádria Sofia Dias Lage /

Teresa de Lauretis (DE LAURETIS, 1996, pg. 100) pontua que tanto no modelo linguístico estrutural, quanto no psicanalítico dinâmico, ambos alicerces fundamentais da teoria contemporânea do cinema, “a relação da mulher com a sexualidade ou é reduzida e assimilada à sexualidade masculina ou fica nela confinada”. Tal afirmação é facilmente verificada e já amplamente debatida através da análise de filmes dos mais diversos gêneros. O cinema de horror, por exemplo, por vezes reforça, por meio de figuras como a bruxa de A Maldição do Demônio (1960), a associação entre sexualidade feminina e malignidade, presente no imaginário coletivo desde a segunda metade da Idade Média (LAROCCA, 2020). Larocca é ainda mais enfática ao pontuar que “os autores [dos tratados sobre bruxaria da Idade Média] não acusam em nenhum momento mulheres virgens ou castas de bruxaria. As bruxas são sempre adúlteras, parteiras assassinas, mães malignas e mulheres desviantes da norma”. A autora destaca também como a representação cinematográfica dessa mulher diabólica ganhou forças a partir da década de sessenta, período em que o debate acerca da libertação sexual feminina cresceu através da segunda onda feminista.

Quando não demonizada, a “sexualidade feminina” no cinema é na verdade apenas a sexualidade masculina projetada sobre o corpo de uma mulher-objeto cujo único prazer é ser pivô do prazer masculino. Assim, entre bruxas e femme fatales, degeneradas ou não-sujeitos, há, ainda hoje, pouco espaço no audiovisual para representações satisfatoriamente saudáveis do desejo e do corpo feminino. Nesse contexto, é compreensível e até benéfico que indivíduos minimamente letrados em questões de gênero questionem a forma como o erotismo é trabalhado nas obras, especialmente aquelas dirigidas por homens.

A série The Idol (Sam Levinson, 2023),por exemplo, suscitou grandes debates no seu ano de lançamento por explorar o corpo feminino de forma excessivamente sexual, fetichista e degradante. Na época, divulgou-se que muitas dessas cenas teriam sido supostamente adicionadas após a substituição da diretora Amy Seimetz por Sam Levison. A revista Rolling Stones, que afirma ter ouvido cerca de treze funcionários do programa, disse que a justificativa do co-criador Abel Tesfaye para a troca teria sido de que a série estava enveredando excessivamente por uma “perspectiva feminina”. A recorrência de acontecimentos como esse tornam mais do que compreensível um certo temor à construção de personagens femininas sob “perspectiva masculina”, especialmente no tocante à sexualidade. No entanto, a linha entre propor um debate progressista sobre dignidade feminina nas telas e sucumbir à caretice e ao moralismo disfarçados pode ser surpreendentemente tênue às vezes, especialmente quando estamos hiperexpostos a ferramentas como as redes sociais, que têm a capacidade de nos oferecer uma quantidade louvável de problematizações relevantíssimas, sem, no entanto, aprofundar a maioria delas. É o que acho que acontece com alguns lançamentos recentes, como Pobres Criaturas (Yorgos Lanthimos, 2023) e, o eixo central da pesquisa desse ensaio, Anora (Sean Baker, 2024), ambas obras com reflexões pertinentes sobre feminilidade, mas alvo de muitas críticas por estarem supostamente propondo uma perspectiva masculinista de cinema através de suas representações sexuais.

Assim como os críticos desses filmes, senti um breve desconforto ao ver projetadas no telão as cenas de sexo das produções citados. Nas duas vezes, voltei para casa pensativa. Seria o desconforto um indicativo de que as cenas eram “desnecessárias”, como vi algumas pessoas comentarem? Alguns anos atrás talvez pensasse que sim, os filmes, em particular Pobres Criaturas, poderiam existir sem alguns planos. Mas, sendo o cinema uma arte e a arte subjetiva por essência, há algo que de fato seja uma necessidade e não mera escolha de cunho autoral? E ainda mais, em que medida estamos nos acovardando diante da possibilidade de fazer um cinema mais confrontativo ao optarmos por uma lógica utilitarista e até um tanto conservadora que evite incorporar de forma tão gráfica cenas de mulheres realizando essas ações aparentemente sem função narrativa, mas básicas à vida fora das telas? Ainda não encontrei, e penso que não haja, uma resposta definitiva e universal para esses questionamentos. O que compartilho agora são, portanto, algumas reflexões que fiz durante o processo de pensar a obra à luz dessas perguntas.

Laura Mulvey aborda a questão do prazer visual falocêntrico exercido sobre a imagem da mulher no cinema afirmando que dois pilares o sustentam: a escopofilia, isto é, “ato de tomar as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e controlador” (MULVEY, 1983, pg. 440) e o ego, a partir do qual o homem- espectador pode se identificar com o homem-personagem e assim possuir por tabela a mulher fílmica. Em Anora, há desde a primeira cena o estabelecimento da escopofilia, com uma decupagem que dilacera o corpo da protagonista e de outras mulheres em planos que focam nos seus corpos hiperssexuais. No entanto, a câmera passeia por elas como em uma esteira até parar na protagonista, mostrando que, embora pelas próximas horas ela vá receber um pouco mais de atenção do espectador que as outras, Anora ainda é apenas mais uma trabalhadora sexual em uma longa linhagem, todas buscando se sustentar da forma que podem, mesmo que, como dito mais à frente no filme, sem direitos trabalhistas mínimos. A apropriação da personagem como substrato para a manifestação do desejo sexual masculino funciona, então, como uma estrutura metalinguística em que se aplica a fórmula, objetificando a personagem, para criticar a própria fórmula, que expõe trabalhadoras sexuais a situações desumanizadoras na vida real.

O jogo realizado no filme com o segundo componente do prazer espectatorial, o ego masculino, me parece ainda mais subversivo e inteligente que o primeiro. Se temos à disposição uma personagem com uma carga erótica tão forte, é esperado que haja também figuras masculinas capazes de dominá-la e, assim, emascular o espectador homem através da identificação. Em pesquisa quantitativa realizada com pessoas de faixas etárias e classes sociais diversas, Valeska Zanello indagou qual seria o pior xingamento a ser atribuído a um homem e obteve como principais respostas as ofensas à heteronormatividade (“viado”), à produção material (“fracassado”, “pobre” e etc) e às características sexuais, especialmente vinculadas ao falo e à eficiência sexual. Nesse sentido, Ivan, único personagem pelo qual é possível se sentir perto de dominar Anora, não se distancia apenas pontualmente do ideal de ego masculino, mas simboliza uma das maiores chagas que podem atingir a virilidade de um homem: a inexperiência sexual.

Quando Anora começa a educar sexualmente seu namorado, após muitas performances constrangedoras de Ivan, o público pode induzir que finalmente assistiria a emasculação do personagem. Ao contrário: acabam as cenas de sexo. Nesse momento entra em cena Igor, outro personagem com algum interesse em Anora. Por meio dele, Sean Baker brinca de novo com as expectativas do espectador, deixando em aberto até os instantes finais se haverá algum envolvimento entre os dois. Igor, repetidamente agredido e humilhado por Anora, ainda não é o ego ideal, mas representaria uma possibilidade viável para a consumação do prazer masculino, até agora sem completar a etapa egóica.

Na última cena, os dois se beijam. Mesmo que Igor tenha colaborado com as violências físicas e psicológicas, não seria uma surpresa se a protagonista se rendesse a essa figura construída como alguém que “não é de todo mal”, à la A Bela e a Fera. É a escolha de fazer a personagem recuar e, ao invés de satisfazer um olhar fetichista, entregar o momento mais humanizado e vulnerável do filme, com a exposição de toda a sua dor, que encerra seu arco com chave de ouro.

Gênero não é um conceito estático, mas um produto cultural que passa por reforços identitários através das tecnologias de gênero (DE LAURETIS, 1987). Essas tecnologias se tornam ainda mais necessárias na contemporaneidade, momento no qual o controle social se dá de maneira menos repressiva e mais discursiva, isto é, por meio da disseminação de certos valores de modo que cada indivíduo acredite que aquele senso de moral é inerente à si. Então, quando assistimos uma obra, e certamente já vimos muitas, em que a personagem feminina encontra a felicidade ao negligenciar sua segurança física e mental por um homem, há a possibilidade de se assimilar, aumentada pelo volume de obras com a mesma mensagem, que esse é o papel feminino fora do cinema também.

Assim, Anora traz um panorama interessante no que tange às emocionalidades femininas ao representar essa mulher que, ao invés de encontrar realização pessoal, se fere profundamente ao fazer o socialmente esperado em alguns quesitos românticos e sexuais, ou seja, dedicar todas as suas forças para tentar se manter em uma relação falida e aceitar momentaneamente ter trocas carnais com o seu algoz. Além disso, os tensionamentos eróticos do filme também me chamam atenção, por colocarem a personagem em uma posição por vezes objetificada, mas que amplifica as problematizações de classe e gênero do filme, sem se render a uma reprodução maquinal de uma perspectiva que prioriza por completo o prazer masculino
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAROCCA, Gabriela. Bruxas no cinema: Mal feminino no filme A Maldição do Demônio (1960). IN: Laboratório de Estudos do Romance USP, Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o7GVCUg60PI. Acesso em: 16 de março de 2025. LAURETIS, Teresa de. Através do espelho: o cinema e a imagem da mulher. Trad. Andréa Seligmann Silva. São Paulo: Papirus, 1994.
TOLEDO, Marina. Entenda as polêmicas de “The Idol”, série do criador de “Euphoria”, com The Weeknd e Lily-Rose Depp. CNN Brasil, São Paulo, 4 jun. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/entenda-as-polemicas-de-the-idol- serie-do-criador-de-euphoria-que-estreia-hoje-4/. Acesso em: 18 mar. 2025.

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antropologia e estética da recepção cinematográfica. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 437-453.
DE LAURETIS, Teresa. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS

ANORA. Direção: Sean Baker. Estados Unidos: FilmNation Entertainment, 2024.
A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO. (La maschera del demonio). Direção: Mario Bava. Itália: Galatea Film, 1960.
A BELA E A FERA. (La belle et la bête). Direção: Jean Cocteau. EUA: DisCina, 1946. POBRES CRIATURAS. (Poor Things). Direção: Yorgos Lanthimos. EUA: Searchlight Pictures, 2023.
THE IDOL. Criação: Sam Levinson, Abel Tesfaye, Reza Fahim. EUA: HBO, 2023.


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