Crítica de Motel Destino

Por Kian Zwicker*

Selecionado para a competição principal do Festival de Cannes de 2024 e vencedor do prêmio de Melhor Primeiro Filme no Festival Internacional de Marselha de 2023, Motel Destino é o novo longa-metragem do cineasta cearense Karim Aïnouz, conhecido por obras como O Céu de Suely e A Vida Invisível. Com coprodução da França e Alemanha, o filme mostra mais uma vez a força do cinema brasileiro em contar histórias sensuais, profundas e com uma atmosfera que prende a atenção.

A história acompanha Heraldo, um jovem envolvido com o tráfico de drogas. Ele está endividado e quer muito sair desse mundo do crime. Quando Bambina, a traficante que lidera o grupo, propõe que ele mate um cliente que lhe deve dinheiro, Heraldo aceita. No entanto ele acaba levando um golpe de uma mulher desconhecida numa noite de sexo casual, e com isso a tentativa de assassinato dá errado, e Heraldo se refugia em um motel na beira da estrada. Nesse espaço isolado, ele conhece Dayana, e ali começa a se desenvolver uma história marcada por tensão sexual, desejo e violência. Classificado como thriller erótico, o filme mistura diferentes gêneros e atmosferas, passando pelo drama psicológico e trazendo referências à pornochanchada brasileira, segundo o próprio diretor.

Desde o começo, Motel Destino chama atenção pelo seu forte apelo visual. A fotografia é um dos principais destaques do filme. As cores vibrantes e elétricas, como os azuis profundos, os vermelhos quentes e os roxos fluorescentes, criam uma atmosfera hipnotizante, que prende o espectador. A iluminação quase se torna um personagem à parte, formando contrastes marcantes que refletem a tensão e a sensualidade que envolvem os protagonistas. Optar por filmar em película reforça essa estética, conferindo à obra uma textura e um charme que combinam bem com o erotismo retrô que a história busca evocar.

Um outro acerto é a maneira como a narrativa se conecta ao espaço do motel. Ele funciona como o coração da trama. É lá que a história se inicia, se desenvolve e se resolve. A forma como o diretor usa esse ambiente, que ao mesmo tempo é um espaço íntimo e impessoal, cria uma ambientação envolvente e cheia de simbolismo para o desenvolvimento emocional e sexual dos personagens. Essa escolha reforça a proposta do gênero e torna tudo mais cativante para quem assiste.

Só que, apesar desses méritos, o filme apresenta falhas que comprometem a sua narrativa. Um dos principais problemas está na tentativa de impor uma estética “cult” a uma história essencialmente simples. Acho importante dizer que histórias simples não são, de algum modo, algo ruim. Muitas grandes histórias, na verdade, são construídas sobre premissas básicas, o verdadeiro desafio está na forma de contar essas histórias. Motel Destino, no entanto, parece querer vestir sua narrativa com uma camada de complexidade visual e experimental que nem sempre se sustenta. O resultado é um remendo entre momentos genuínos e outros em que o filme parece estar performando uma profundidade que ele não possui.

As cenas de sexo, que são essenciais ao thriller erótico, parecem mecânicas, apressadas e muitas vezes sem propósito narrativo claro. O que é irônico, já que o sexo é o motor das ações dos personagens, mas falta intensidade as sequências sexuais. Mesmo que o filme tenha uma nudez explícita e que os atores sejam bonitos e alvos de um possível desejo do público, falta à direção uma construção mais orgânica desse desejo. Em outras palavras: faltou tesão.

Em vez disso, o erotismo parece ensaiado, fazendo com que o que deveria ser instigante, se torne constrangedor. Numa coletiva de imprensa, o diretor afirmou que a pornochanchada foi uma de suas referências, o que talvez explique o tom exagerado e as transições bruscas entre a tensão, a comédia e o erotismo. Mas pra mim, a montagem se perde em diversos momentos, especialmente nas cenas de delírio do Heraldo. Esses momentos são montados com uma proposta mais experimental, mas eles destoam do restante do filme e não contribuem para a construção coesa da narrativa. A estética alternativa dessas cenas, que poderia trazer um elemento de subjetividade, parece forçada.

Mas o que realmente me trouxe desconforto foi o tratamento da sexualidade, principalmente das camadas queer que o filme flerta, mas não assume. A divulgação do longa chegou a sugerir a possibilidade de um trisal entre os personagens Heraldo, Dayana e Elias. No entanto, o filme ignora essa promessa narrativa, optando por desenvolver uma relação heterossexual convencional, enquanto coloca qualquer sugestão homoafetiva em um lugar de desconforto, fetiche ou desvio. O personagem Elias, representado por Fábio Assunção, é o mais complexo da obra. No entanto, ele é retratado com camadas homoeróticas que nunca são desenvolvidas com respeito ou nuance, pelo contrário, elas são atreladas à sua personalidade violenta e abusiva.

Além disso, também me causou incômodo a representação dos personagens queer e de gêneros não convencionais, especialmente entre os antagonistas, os capangas da facção da Bambina. A maquiagem carregada, as roupas excêntricas e os trejeitos são usados como marcadores de “ameaça” e desvio. O personagem Môco, por exemplo, é abertamente gay, mas construído como traiçoeiro e manipulador. E isso não é um problema por si só, personagens LGBTQIA+ podem ser os vilões, mas o fato de todas as representações queer do filme estarem associadas a características negativas revela um viés narrativo preocupante, ainda mais em uma obra que se propõe moderna e provocadora.

Quando chega o final da obra, é aí que o filme perde a força. A sequência de perseguição final é mal executada, e o acidente de Elias parece incompleto, como se tivessem faltado cenas para acrescentar na montagem. A última cena, em que uma carta de Heraldo, alguns anos após os acontecimentos finais é narrada, soa deslocada e artificial, destoando completamente da atmosfera construída até ali. A sensação que fica é de uma história que não soube muito bem como terminar, ou que tentou costurar algo poético onde não cabia.

Apesar de suas falhas, Motel Destino é um filme que merece atenção. O cinema brasileiro tem experimentado cada vez mais na linguagem, e o fato de uma obra como essa ser exibida em Cannes é motivo de celebração. A fotografia é deslumbrante, o uso do espaço é eficiente, e a tentativa de ousar, ainda que não se sustente em todos os aspectos, é louvável. O filme talvez não seja tudo o que promete, mas não deixa de ser um registro importante da vitalidade do cinema nacional. É uma obra que, apesar dos deslizes, merece ser vista, até para que ocorra discussões produtivas sobre o que ela tenta dizer, o que ela não consegue dizer, e o que ela talvez diga sem querer.

* Kian Zwicker é egresso do Curso de Cinema e Audiovisual da UFPA.


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