Por Lucas Figueiredo /
“O Menino e o Mundo” é um filme que, desde o seu lançamento, se destacou como uma obra de grande profundidade temática. Dirigido por Alê Abreu, o longa apresenta a trajetória de um garoto simples, que vive em uma pequena casa no campo com seus pais. Porém, devido à falta de trabalho, o pai decide partir para a cidade grande, deixando a família para trás. Triste e desorientado, o menino decide seguir o pai, pegando um trem rumo à cidade, onde acaba se deparando com uma realidade marcada pela pobreza, exploração dos trabalhadores e um futuro sem perspectivas. O filme, ao apresentar essa jornada, busca transmitir uma crítica contundente às desigualdades sociais, utilizando como elo narrativo a visão de uma criança, cuja inocência e curiosidade tornam o olhar sobre a dura realidade ainda mais pungente.
Essa abordagem narrativa não apenas dá um tom único ao filme, mas também estabelece uma conexão direta com o público. Ao olhar o mundo através dos olhos do protagonista, o espectador compartilha da mesma ingenuidade e inexperiência. A proposta de Abreu, ao transformar essa visão simples e ingênua em uma poderosa mensagem crítica, resulta em uma experiência rica e transformadora. A indicação ao Oscar de Melhor Animação em 2016 é uma evidência do impacto que a obra causou globalmente, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma inovadora de fazer arte.
Uma das características mais marcantes de “O Menino e o Mundo” é a sua estética visual. Alê Abreu opta por uma animação minimalista, com traços simples que lembram desenhos infantis, mas que não perdem a capacidade de transmitir mensagens complexas. Essa escolha estética é de extrema importância, pois a simplicidade não só reflete a visão do menino, mas também reforça a ideia de que a beleza está nas pequenas coisas e nos detalhes mais sutis da vida. As cores vibrantes que dominam o início da trama, quando o menino ainda está no campo, contrastam com os tons mais sombrios e opressores da cidade grande, criando uma dicotomia clara entre o campo e a cidade, entre o antigo e o moderno.
As transições entre esses mundos são marcadas por uma mudança significativa na paleta de cores e no estilo da animação. Quando o menino entra na cidade, a animação ganha em momentos uma textura mais sofisticada, indo do simples para o 3D. Essas mudanças visuais não são meramente estéticas, mas simbolizam a entrada do protagonista em um mundo totalmente novo e desconcertante. O contraste entre o desenho mais primitivo do campo e as imagens mais detalhadas da cidade grande também reflete a desigualdade de oportunidades entre as áreas rurais e urbanas, um dos temas centrais do filme.
“O Menino e o Mundo” é notável por ser um filme com muito pouco diálogo. As palavras não são essenciais para a narrativa, o que é uma escolha ousada, mas extremamente eficaz. Ao substituir diálogos por sons, músicas e símbolos, o filme se transforma em uma experiência sensorial única. A trilha sonora, composta por canções que são tocadas ao contrário e inseridas nos momentos-chave da trama, adquire um papel central na construção da narrativa. Uma das passagens mais marcantes do filme é a lembrança do menino ao ouvir seu pai tocando um instrumento musical. Esse momento de nostalgia se torna um símbolo profundo de afetividade, de laços familiares e da memória, um tema que perpassa toda a obra. Além disso, a música “Aos Olhos de Uma Criança”, do rapper Emicida, se encaixa perfeitamente no contexto do filme. A combinação da música com os sons do cotidiano da cidade e do campo resulta em uma imersão completa na atmosfera que Abreu tenta criar. A escolha de artistas nacionais, como o grupo Barbatuques e o percussionista Naná Vasconcelos, também reforça a identidade cultural do filme, ancorando-o em um contexto brasileiro e, ao mesmo tempo, universal.
Uma das escolhas mais ousadas no filme ocorre no meio da narrativa, quando Abreu decide interromper a animação por alguns minutos para inserir imagens reais de desmatamento, queimadas e guerras. Essa transição brusca para a realidade é um choque visual e emocional, que acentua o impacto das críticas sociais presentes no filme. A inserção dessas imagens não é apenas uma escolha estilística, mas uma metáfora visual de como as problemáticas ambientais e sociais são frequentemente ignoradas ou minimizadas pela sociedade.
O filme apresenta uma crítica direta ao sistema capitalista, especialmente no que diz respeito à exploração do trabalho e à mecanização da vida humana. A cidade grande, com sua arquitetura impessoal e seus personagens caricatos (representados por carros-fortes e caminhões), é um reflexo de um sistema que coloca a produtividade e o lucro acima da dignidade humana. A metáfora da fênix, que ressurge das cinzas após ser atacada por canhões, serve como um símbolo da resistência e resiliência da sociedade, que, apesar de ser constantemente esmagada pelo sistema, ainda encontra forças para continuar, como se a alegria e a luta nunca pudessem ser completamente derrotadas. A falta de diálogo e a estética minimalista permitem que o filme alcance tanto um público infantil quanto adulto, com um nível de profundidade que pode ser apreciado por ambos os públicos. Para as crianças, a animação oferece uma visão lúdica do mundo, onde os conflitos são apresentados de forma simbólica, mas clara. Para os adultos, as metáforas e subtextos escondidos nas imagens e nos sons permitem uma reflexão crítica sobre o capitalismo, a desigualdade social e os problemas ambientais.
A questão da exploração do trabalho é representada de forma particularmente impactante ao mostrar o menino observando as fábricas e os operários, e como as grandes máquinas de produção parecem engolir a humanidade das pessoas. Essa exploração é simbolizada também pela figura de um operário, que trabalha incessantemente e cuja vida parece ser regida apenas pela necessidade de produzir. O filme sugere, com grande sensibilidade, que, em um mundo cada vez mais mecanizado, a verdadeira humanidade da pessoa pode ser diluída, como se ela fosse uma engrenagem em uma grande máquina.
“O Menino e o Mundo” não é apenas uma animação cativante, mas uma obra que, ao abraçar uma estética simples e uma narrativa sensível, consegue comunicar de forma direta e impactante questões sociais urgentes. A obra de Alê Abreu se destaca não só no contexto brasileiro, mas também internacionalmente, como um exemplo de como a animação pode ser usada como uma poderosa ferramenta para a reflexão social.
A expansão do mercado de animação no Brasil, nos últimos anos, deve muito a filmes como “O Menino e o Mundo”, que provaram que é possível contar grandes histórias sem perder a relevância ou o impacto. A obra também se apresenta como uma poderosa ferramenta pedagógica, sendo amplamente utilizada no ambiente educacional para discutir temas como desigualdade social, desemprego e os problemas do capitalismo. Ao final, “O Menino e o Mundo” não é apenas uma animação visualmente encantadora, mas uma reflexão profunda sobre a sociedade e o impacto da modernidade sobre as relações humanas. Suas imagens, sons e metáforas permanecem conosco, como as lembranças que moldam a nossa existência e nos tornam mais conscientes de nossa realidade. Esse é um filme que vai além do entretenimento e convida todos os espectadores a refletirem sobre o que significa viver no mundo contemporâneo.
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