Crítica do filme Flow

Lyandra Farias Ribeiro /

Flow é um longa-metragem de animação que conta a história de um gatinho que, em meio a uma enchente, precisa deixar seu lar para sobreviver. Lutando contra o seu medo de água, ele precisa ser corajoso para enfrentar seu maior temor e equilibrar as diferenças entre espécies para conseguir se salvar.

Surpreendendo a todos, Flow foi feito por um diretor letão em um software gratuito com uma equipe e um orçamento super reduzido, finalizado pouco antes de sua estreia, no Festival de Cannes. Algo que, com certeza, trouxe o seu diferencial, não vemos uma longa lista de nomes em seus créditos, com a maior parte das funções feita pelo seu diretor, Gints Zilbalodis. Em entrevista ao site Omelete, ele relatou esse processo: “Usei o Blender para fazer Flow. É um software de aberto, livre e qualquer criança hoje em dia pode fazer um filme usando ele. […] Vai levar algum tempo para processar, não poderia ter feito isso sem a ajuda de todos aqui, nossos companheiros na Letônia, e de outros países. Me sinto muito sortudo.”

Com sua simplicidade, o gatinho conquistou o mundo vencendo o prêmio de Melhor Animação no Globo de Ouro e no Oscar. A Letônia – país de origem de Zilbalodis – está em festa. Seus troféus estão orgulhosamente em exposição no Museu Nacional de Arte da Letônia, atraindo grandes filas apenas para vê-lo mais de perto. Grafites, crianças pedindo gato preto de presente e até estátuas do felino são algumas das maneiras dos cidadãos de se alegrar e comemorar a grande vitória. Esta não ser a primeira animação do cineasta. Em 2019, ele lançou Away (2019), realizado com o programa de computador Autodesk Maya e com as mesmas características de Flow, mas que não fez tanto sucesso mundo afora.

Flow carrega uma quantidade de sentimentos implícitos e palavras não ditas. O medo é transparente em seus olhos e expressões, cada passo é muito bem pensado para representar as espécies em sua natureza. A abordagem que Zilbalodis escolhe chama a atenção: um filme sem diálogos, sem personificação de animais e com um traço único em sua animação. Não é atoa que ganhou uma vasta credibilidade desde seu lançamento. Zilbalodis opta pela simplicidade, contrariando tudo o que normalmente estamos acostumados a ver através de grandes estúdios hollywoodianos. A textura de cada personagem é mais chapada e desbotada, sem grandes nuances de cores. Isso, porém, encanta ainda mais o espectador, por ser algo que o diferencia em relação às demais animações recentes. A dublagem é feita por animais reais – com exceção da capivara que, segundo o diretor, tem um som de um camelo bebê, já que o som real não o agradou em conjunto a personagem. Essa autenticidade dos sons nos leva a ter uma maior relação de afeto aos protagonistas, a torcer e a temer por eles.

Detalhes e inserts nos mostram estátuas, desenhos e cortes de árvores em formatos do felino, dizendo que o gatinho já foi muito amado um dia, mas agora vive sozinho. Não é explicado no filme como ele chegou até ali, porém, implicitamente, entendemos o motivo: as enchentes, mas também sinto que isso seja algo muito interpretativo de cada espectador, trazendo múltiplas camadas e interpretações ao filme. Zilbalodis traz uma analogia escondida através da água: a mudança. O mesmo, ao dar entrevistas, comenta que se baseou em seu gatinho e que o fez enfrentar seu medo de água. Assim, logo no início, as primeiras imagens são das correntezas, de seu reflexo em um lago, deixando claro ao espectador sobre o que fala o filme. Heráclito, filósofo pré-socrático, usava a imagem de um rio como representação da mudança, ele dizia que as mesmas sempre mudam e, consequentemente, quem se banha nele também. Nesse sentido, percebemos o quanto os personagens mudam no decorrer da trama, o gatinho medroso que nem tocava no mar, dá corajosos mergulhos em busca de comida, além da grande evolução, pois mesmo após as enchentes passarem, nada retorna da mesma forma que era anteriormente.

Retornando a aspectos técnicos, a construção sonora contribui para nos prender em tela, as nuances da melodia em cada fuga ou nos momentos de sobrevivência ajudam a manter a atenção no que está acontecendo e mostra o tom de cada cena. A fotografia nos proporciona uma imersão em sua estética, sua beleza encanta, adquirindo uma linda iluminação em seus dias de sol e uma sombria escuridão na calada da noite. Ou em cenas com mais cargas dramáticas, como a do pesadelo do gatinho, trazendo os veados e sua corrida como símbolo de que algo ruim está por vir, já que o anúncio da enchente é trazido junto deles. A câmera é colocada na altura de cada um, planos e contra-planos mostrando a relação entre eles. Percebemos isso no início da interação entre a ave e o gato, a grande diferença de altura, fazendo o menor temer o outro.

Uma das cenas mais marcantes do longa-metragem, que demonstra como o filme constrói as suas mensagens sem precisar recorrer a falas, foi o momento da briga entre as duas aves, com o bando das mesmas assistindo. O modo como um olha o outro de cima, claramente mostrando superioridade, e a forma como o bando apenas observa tudo e ainda obedece as ordens do superior, traz uma mensagem de analogia ao bullying. No fim do acontecimento, quando o secretário percebe que agora está sozinho, abandonado pelo seu grupo, o felino se aproxima, como uma forma de agradecer por o ter defendido e dizer que ele tem amigos, porém, apesar do significado implícito, o mesmo começa a lamber sua pata, o que reafirma ao público que eles continuam sendo bichos.

Entretanto, apesar de abordar a natureza de cada animal, Flow também evidencia a inteligência, a racionalidade de cada personagem e a necessidade de uma amizade improvável para garantir sua sobrevivência. O medo do amanhã e do que estar por vir são representados através deles. A união e a parceria nos leva a refletir o quanto precisamos da ajuda uns dos outros, principalmente em momentos difíceis. A forma como uma capivara, um gato, um lêmure, uma ave (conhecida como secretário) e um cachorro – espécies completamente diferentes entre si – precisam se juntar em um barco e trabalhar em conjunto, mostra um pouco da humanização dos personagens que, apesar de seus instintos, escolhem se unir.

No fim de sua trama, vemos a vida em sua forma, a natureza agindo, uns precisam morrer para outros sobreviverem, mostrando o quanto nem todos podem sair ganhando. Percebemos isso através da baleia que, ao baixar as enchentes, notamos uma dualidade de sentimentos: a tristeza no olhar do protagonista, sem poder fazer nada para ajudar, mas também o alívio de que o pior já passou, ao lado de sua nova família.

Por fim, Flow traz uma mensagem muito importante a cada espectador: a união é a base para enfrentarmos tempos difíceis, que não devemos olhar as diferenças entre si, mas sim o que possuímos em comum. O medo pode ser um grande impedimento para evoluirmos, mas ao enfrentá-los nos tornamos mais fortes e corajosos.


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