Crítica do filme O Reflexo do Lago

Por Stéphanie Nascimento /

“O Reflexo do Lago” (Amazon Mirror) é um documentário de 1h19 minutos que foi dirigido por Fernando Segtowick e foi lançado em 2020. O filme explora de forma poética os impactos socioambientais devido a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, que foi concluída na década de 1980. A Usina de Tucuruí é uma das maiores do Brasil, foi inaugurada nos anos 80 com a promessa de garantir energia para a região e outras localidades. No entanto, quatro décadas depois, os impactos ambientais provocados pelo empreendimento ainda ecoam na paisagem e na vida das comunidades locais.

No filme, é mostrado o resultado da construção da barragem, que resultou na inundação de aproximadamente 2.850 km2 de floresta amazônica, provocando a perda irreparável de biodiversidade. Espécies endêmicas foram extintas ou deslocadas, vegetações ficaram submersas, contribuindo para emissão do efeito estufa, como metano, liberado pela decomposição da matéria orgânica debaixo d’água. Mesmo após décadas da instalação da usina, as comunidades ribeirinhas e moradores da região ainda sofrem com os desdobramentos da barragem, principalmente com o deslocamento forçado e a falta de acesso à energia elétrica (o que é uma ironia, visto que eles moram bem ao lado da maior usina do Brasil), e as mudanças drásticas no ecossistema local.

Com direção de Fernando Segtowick, a obra audiovisual tem uma beleza áspera e melancólica, que transforma a imensidão da Amazônia em um espaço de memórias apagadas e promessas não cumpridas. Gravado em preto e branco, o longa abandona a trajetória expositiva tradicional de documentários e é construído como um agrupamento de relatos, permitindo que a própria paisagem e seus habitantes contem a história de que o progresso tão almejado foi esquecido.

Em alguns momentos na narrativa é possível perceber que o diretor se coloca como personagem no filme para trazer uma perspectiva pessoal sobre os impactos da construção. Uma abordagem que é até interessante, mas às vezes executada em planos longos demais, que, na minha percepção, deixam a narrativa perdida e até preguiçosa. Muitas das vezes ele insere suas reflexões e questionamentos, guiando o espectador por uma investigação (vazia) que mistura memória, história e denúncia. Esse envolvimento direto torna o filme subjetivo, destacando não apenas os testemunhos das comunidades afetadas, mas também a relação do próprio Fernando com a história que está sendo contada.

O filme é construído lado a lado de diferentes camadas e sobreposições visuais e narrativas, alternando entre momentos de contemplação com um estilo mais direto, próximo do cinema de reportagem. Ele caminha entre diferentes formas de representação, ora adotando um naturalismo mais elaborado, ora recorrendo a uma abordagem despojada e espontânea. Diversas vezes eu fiquei perdida, pois não sabia o que o documentário queria me apresentar. Essa fusão de elementos reforça a ideia de que as barreiras entre documentário e ficção são cada vez mais sutis, seguindo uma tendência do cinema contemporâneo em explorar formatos híbridos. Hoje é praticamente impossível escapar dessa visão mais autoral, independentemente do grau de realismo ou distanciamento pela forma como ele é abordado.

A escolha estética do preto e branco não é apenas um capricho visual, mas uma decisão narrativa poderosa. O diretor relatou que a inspiração para o documentário foi uma fotografia do livro Projeto: Lago do Esquecimento (2011) da fotógrafa Paula Sampaio, que mostra uma árvore morta no lago do Tucuruí. Fernando conta que a árvore lhe remeteu a uma pessoa se afogando e pedindo socorro.

O reflexo no lago, título que remete ao espelho d’água criado pela barragem, é, na verdade, um reflexo da negligência histórica que mantém essas pessoas na sombra. A grande força do documentário está na escuta. Os moradores falam de um passado de promessas, de uma terra que foi alagada não apenas pelas águas, mas pelo esquecimento dos poderosos e do poder público. Fala sobre a ironia brutal de viver às margens de uma das maiores hidrelétricas do país sem ter acesso à eletricidade.

No entanto, abordagem contemplativa e minimalista pode ser um bloqueio para algumas pessoas, como foi para mim em diversos momentos do documentário. A ausência de um fio narrativo mais estruturado ou de uma investigação mais profunda sobre os responsáveis, para mim foi o que mais deixou a desejar. Ficou a sensação de que falta um enfrentamento direto do sistema que perdura essa injustiça. Os planos longos do diretor como personagem, por exemplo, na cena em que Segtowick fica nadando, era algo que para mim não precisava estar ali, na verdade era só uma forma poética de mostrar o lago.

O diretor opta por não entregar um documentário didático ou investigativo no sentido tradicional, e sim opta em dar voz aos moradores da região, que relatam suas memórias, perdas e frustrações. Segtowick busca ressaltar a contradição entre o discurso do desenvolvimento e a realidade das pessoas que vivem sem acesso à eletricidade, saúde e infraestrutura básica, mesmo estando próximas a uma das maiores usinas hidrelétricas do Brasil.

A direção de arte e fotografia conseguiram me sensibilizar diversas vezes com as histórias da comunidade, o fato do filme ser em preto e branco foi uma sacada muito boa para o documentário. Quando a gente pesquisa no Google sobre o que significa filmes em preto e branco, palavras como atemporal e dramaticidade são palavras comumente citadas. E acredito que foi isso que Fernando quis passar, trazer uma carga mais dramática, uma sensação única e subjetiva da obra e sugerir de que a narrativa se passa em outra dimensão ou lugar diferente do real.

Se Tucuruí simboliza o avanço energético do Brasil, também se tornou um lembrete amargo do alto custo ambiental e social desse progresso. A destruição de ecossistemas inteiros e o deslocamento de comunidades não podem ser tratados como meros efeitos colaterais do desenvolvimento. A promessa de sustentabilidade exige mais do que discursos – exige planejamento real e compromisso com o equilíbrio entre crescimento e preservação, algo que Tucuruí falhou em garantir. Ainda assim, O Reflexo do Lago é um filme necessário. Não é um filme que grita, mas que ecoa. Sua força está nos silêncios, nos rostos marcados e na água parada que esconde uma ferida aberta.


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